Prof. Dr. Fernando Mattiolli Vieira
Introdução
Esta análise terá como ponto central dois hinos bastante famosos, encontrados no Evangelho de Lucas. O primeiro está registrado em Lc 1:46-55, conhecido como Magnificat. O segundo é o Benedictus, encontrado no final do mesmo capítulo de Lc, nos vv. 68-79. Visando a facilitar a compreensão ao leitor acerca das considerações aqui propostas, ambos serão dispostos abaixo. O primeiro é o Magnificat:
(...) “Minha alma engrandece o Senhor, e meu espírito exulta em Deus em meu Salvador, porque olhou para a humilhação de sua serva. Sim! Doravante as gerações todas me chamarão de bem-aventurada, pois o Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor. Seu nome é santo e sua misericórdia perdura de geração em geração, para aqueles que o temem. Agiu com a força de seu braço, dispersou os homens de coração orgulhoso. Depôs poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou. Cumulou de bens a famintos e despediu ricos de mãos vazias. Socorreu Israel, seu servo, lembrado de sua misericórdia conforme prometera a nossos pais em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre!”{1}
O Magnificat (ou “cântico de Maria”) parece ser uma inserção forçada, acrescentada posteriormente ao texto e oriunda de fonte diferente.{2} Quando sua relação com o contexto é analisada mais de perto, parece não haver harmonia entre o hino e o restante do relato. Caso o leitor resolvesse dar um salto do v. 45 diretamente para o v. 56, não perceberia falta alguma de conteúdo que implicasse na descrição geral. Pode-se concluir, então, que este hino foi inserido no texto recorrendo a uma fonte distinta da que o compositor utilizou para redigir o restante do capítulo. Embora a maior parte dos pesquisadores acredite que esse hino seja mesmo resultante de outra fonte, é certo que o estudo que a gerou provém de um ambiente puramente judaico.{3} Há quem defenda, como Gourgues, que tanto o Magnificat como o Benedictus possuem traços da redação de Lucas (1995, p.53).{4} Se aceita essa opinião, o hino seria mesmo de composição lucana, e não de outro autor posterior que fosse responsável pela interpolação. Segundo o autor citado, algumas expressões do hino fazem alusão direta a Maria, o que provaria – a despeito de o hino possuir uma pré-história ou uma história comum ao ambiente (esta segunda opção não elimina a primeira) – que o hino recebeu um “novo rosto” com a compilação de Lucas. Termos como sua serva (v. 48) e fez grandes coisas em meu favor (v. 49), se vistos como manifestações singulares de louvor, induzem o pesquisador a pensar que foram feitas modificações na estrutura do hino para que se pudesse adaptá-lo à história de Maria.
Essa perícope lucana possui um conteúdo bastante próprio se comparado tanto às Escrituras Hebraicas como aos outros livros do Novo Testamento. Esse fato reduz as possibilidades de se encontrarem suas bases no texto bíblico. O paralelo mais próximo é encontrado nas Escrituras Hebraicas; um tipo de cântico conhecido como “aclamação” ou “oração de Ana”, mãe do profeta Samuel, registrada em 1Samuel 1:11. O texto é o que segue:
E fez um voto, dizendo: “Iahweh dos Exércitos, se quiseres dar atenção à humilhação da tua serva e te lembrares de mim, e não te esqueceres da tua serva e lhe deres um filho homem, então eu o consagrarei a Iahweh por todos os dias da sua vida, e a navalha não passará sobre a sua cabeça.”
A primeira parte do Magnificat apresenta proximidade considerável com a “oração de Ana”. Vemos que a sentença olhou para a humilhação de sua serva (v. 48), encontrada no Magnificat, não apresenta grandes diferenças se comparada com a sentença se quiseres dar atenção à humilhação da tua serva, atribuída a Ana no livro de Samuel. É possível que existisse uma variedade de hinos criados em torno desta temática que conservasse esse tipo de estrutura quando recitados. Essas características encontradas em um hino do séc. I d.C. provariam que este modelo ainda era utilizado.
É necessário considerar que os paralelos não devem restringir-se às estruturas textuais. Como sugerido acima, as temáticas compartilhadas entre diferentes textos podem também provar o uso de fontes comuns. Atualmente, tenho me dedicado mais às questões normativas existentes na literatura qumranita.{5} Com este tipo de material, é bastante claro como algumas das normas criadas pela comunidade de Qumran recorriam a histórias do passado para encontrar justificação. Tais relatos históricos apresentam fortes traços culturais que poderiam ser revividos (ou simplesmente colocados por escrito) pelas gerações seguintes de acordo com seus interesses e possibilidades.
Este ponto de vista pode colaborar com os resultados neste momento. Nos tempos bíblicos, a gravidez era encarada pelas mulheres como uma bênção de Deus (Sl 127:3; 128:3). A esterilidade, por sua vez, era considerada como motivo de vergonha para uma mulher que estivesse em época produtiva. O relato das irmãs Lia e Raquel, dadas como esposas a Jacó, ilustra bem esta questão (Gn 29:30-35). Apesar de Jacó não amar Lia tanto quanto Raquel, Deus a tornou fecunda (Gn 29:31) por sua compaixão pela mulher mal-amada. O fato de Lia ter dado à luz vários filhos causou ciúmes em Raquel, que se considerava uma “mulher morta” por não poder ter filhos (Gn 30:1). Este relato extraído do livro bíblico de Gênesis serve como um bom exemplo para compreender o valor que era dado à gravidez. Infelizmente, neste momento, não podemos discutir as razões antropológicas presentes nessa sociedade que depreciava indivíduos que não se encontravam em perfeito estado físico (o que abarcará aqueles considerados “impuros” ou que não tinham corpo perfeito, como deficientes físicos, mutilados, cegos etc.). O mais importante, por sua vez, é conseguir estabelecer as relações entre o passado e o presente, os objetivos que moveram Ana a fazer sua súplica a seu Deus e Maria a agradecer-lhe por sua gravidez. A narrativa em que está inserido o Magnificat trata justamente desta temática. Isabel, mãe de João Batista, que, segundo o relato, era estéril e avançada em anos, disse depois de sua concepção: Isto fez por mim o Senhor, quando se dignou retirar o meu opróbrio perante os homens! (v. 25).{6} Esse opróbrio em que Isabel acreditava viver resume-se ao fato de ela pertencer a uma casta de mulheres desprivilegiadas moralmente; mulheres solteiras, desposadas e principalmente estéreis.
Ainda assim, a análise feita acima não dá respostas à segunda parte do Magnificat. Os versículos 51-55 do hino, refletem uma linguagem guerreira, típica de diversas correntes de pensamento do período do Segundo Templo, a qual definitivamente não condiz com o estilo de escrita lucana. Esta parte do Magnificat apresenta proximidades com as temáticas encontradas no Benedictus que serão consideradas abaixo. Uma das hipóteses que explicam a influência de uma “literatura de resistência” em meio ao Magnificat é levantada por David Flusser, que indica uma origem qumranita para tais hinos. Analisarei sua proposta mais à frente. A princípio, faz-se importante analisar a segunda metade do hino (vv. 51-55), que abriga o que pode ser chamado de literatura de resistência.
A linguagem guerreira adotada na segunda parte do hino utiliza o conceito de pobreza (aproximado da ideia de “humildade”), um tanto comum ao Judaísmo Antigo e fortemente destacado em Qumran. Lohfink, ao analisar como se dispõe a ideia da pobreza dentro do Magnificat, conclui que o hino
não é de forma alguma um elogio da pequenez, da modéstia, da existência na obscuridade. Pelo contrário, é a mensagem de um Deus que faz justiça aos prejudicados deste mundo e exclui aqueles que se apropriam de partes demasiadas deste mundo (2001, p.19).
Segundo este ponto de vista, sentenças como dispersou os homens de coração orgulhoso (v. 51) e depôs poderosos de seus tronos (v. 52), colocam-se como uma mensagem para o tempo presente, e não para o porvir, mas isso totalmente aqui neste mundo (2001, p.20). Esse conteúdo “subversivo” reflete o ambiente palestino do século I d.C., com todos os seus problemas de ordem social e dominação estrangeira no período. Por volta do início do séc. II a.C., antes mesmo do nascimento da comunidade de Qumran{7} e bem antes da formação das primeiras comunidades cristãs, dá-se o nascimento do gênero literário apocalíptico, que acaba assumindo o papel de literatura de resistência. Esta foi uma das maneiras encontradas para lutar contra o imperialismo político e militar imposto por potências estrangeiras.{8} Utilizando uma linguagem simbólica, cuja compreensão é restrita a um número seleto de pessoas, autores pseudônimos relatavam fatos conturbados de seus dias por meio de metáforas, que tinham por objetivo se contrapor à opressão de um governo estrangeiro sobre território judaico. No Antigo Testamento, o melhor exemplo é o livro de Daniel, escrito provavelmente em meados do século II a.C., período que corresponde à forte influência selêucida e à luta dos Macabeus para rechaçá-la. No Novo Testamento, encontramos este gênero representado no livro de Apocalipse, escrito durante um contexto que possui realidade semelhante, mas contando com um opressor diferente – Roma.{9} Em Qumran, parecia haver um consenso de que se estava vivendo os “últimos dias”, fato que motivava uma interpretação apocalíptica do tempo presente.{10}
O Benedictus, também conhecido como “cântico de Zacarias”, apresenta algumas semelhanças consideráveis com a linguagem utilizada no Magnificat. O texto segue na íntegra.
Bendito seja o Senhor Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo, e suscitou-nos uma força de salvação na casa de Davi, seu servo, como prometera desde tempos remotos pela boca de seus santos profetas, salvação que nos liberta dos nossos inimigos e da mão de todos os que nos odeiam; para fazer misericórdia com nossos pais, lembrado de sua aliança sagrada, do juramento que fez ao nosso pai Abraão, de nos conceder que — sem temor, libertos da mão dos nossos inimigos — nós o sirvamos com santidade e justiça, em sua presença, todos os nossos dias. E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo; pois irás à frente do Senhor, para preparar-lhe os caminhos, para transmitir ao seu povo o conhecimento da salvação, pela remissão de seus pecados. Graças ao misericordioso coração do nosso Deus, pelo qual nos visita o Astro das alturas, para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte, para guiar nossos passos no caminho da paz.
Assim como o Magnificat, há dúvidas a respeito de sua composição e origem. A perícope também é oriunda de outro estudo e foi inserida ao relato possivelmente em algum momento que não o da composição original. O texto pode ser dividido em duas partes: a primeira, entre os vv. 68-76, alude ao passado israelita em que foi estabelecida a Aliança entre Deus e seu povo. A segunda parte, vv. 76-79, trata do cumprimento das expectativas messiânicas. Entretanto, a perícope inteira pode ser encaixada nos padrões militantes encontrados no Magnificat. Ambos os trechos serão considerados em conjunto logo abaixo, à luz de outro documento. Primeiramente, vale ressaltar a importante introdução encontrada no Benedictus. A expressão bendito seja o Senhor Deus de Israel (v. 68) possui um histórico interessante. Em textos como Sl 66:20 e 68:36, o termo baruc ’elohim (bendito seja Deus), prova que essa fraseologia já era anterior ao seu uso pelos cristãos.{11} A comunidade de Qumran também pode ser considerada devedora desta estrutura fraseológica. O autor do importante texto hinário 1QH (1QHodayot) utilizou essa expressão como cabeçalho em seu hinos.{12} Em outro texto qumranita, 4QBem-aventuranças (4Q525), podemos encontrar algo que vai além disso. O texto apresenta uma sequência de bendições que possui uma proximidade marcante com as Bem-Aventuranças encontradas em Mateus 5:3-10.{13} Pode-se acrescentar a estes textos um que será próprio do séc. I d.C., o Shemoneh Esreh (Dezoito Bênçãos). Cada uma de suas “bênçãos” termina com a fórmula baruc ‘atah ’adonai – “Sê bendito, Senhor...” ou “Bendito sejas tu, ó Senhor”. Na benção n. 1, conhecida como ‘avot (“benção dos patriarcas”), essa fórmula é encontrada tanto em seu final quanto no início. Ela possui grande semelhança com a introdução do hino lucano. Segue minha tradução:
Bendito sejas Tu, Senhor nosso Deus de nossos pais (...)
Tu que te lembras das boas obras dos pais,
Tu que suscitarás um Redentor para os filhos de seus filhos (...){14}
As palavras e a ordem das sentenças correspondem às do Benedictus (Bendito sejas o Senhor, nossos pais, lembras). A análise desta fórmula introdutória (e suas variantes) nos permite uma compreensão bastante interessante: ela pode ser encontrada em vários trechos das Escrituras Hebraicas, no texto qumranita de 1QH{15} (cuja redação remete a meados do séc. II a.C, logo após a fundação da comunidade de Qumran) e em textos do séc. I d.C., como o Shemoneh Esreh e o Benedictus. Durante períodos bastante diferentes e relativamente distantes um do outro, este tipo de introdução esteve presente na estrutura de hinos judaicos. Ela pode provar que o uso corrente de tais expressões durante o séc. I d.C. é devedor a tradições mais antigas, registradas em livros conhecidos nas Escrituras Hebraicas.
Segundo o que se pode depreender das conclusões de Gourgues, um dos pontos centrais que estabelecerão as diferenças entre o Benedictus e outros hinos do mesmo período (e do passado) refere-se às expectativas messiânicas. A segunda parte do hino é redigida sob a perspectiva de um porvir messiânico já concretizado. Os hinos anteriores às comunidades cristãs ou utilizados por outros grupos religiosos judeus expressam suas expectativas messiânicas em tempos verbais futuros (e.g., suscitarás – Shemoneh Esreh), enquanto que no Benedictus esta expectativa já se cumpriu (suscitou-nos). A compreensão do futuro/passado na expectativa messiânica israelita é chave para se entender as diferenças ideológicas de textos que passaram por adaptações. Essa versão “cristianizada” da fonte, após passar pelas mãos de Lucas (ou de outro autor cristão), nada mais é que a manifestação literária da forma judaico-cristã de se pensar utilizando padrões conhecidos. Ainda segundo Gourgues, enquanto o primeiro painel (vv. 68-75) recorre a uma ‘formulação judaica’ toda inspirada no Antigo Testamento, o segundo (vv. 76-79) emprega uma formulação cristã ou cristianizada (1995, p. 40, grifos meus). Este resumo, apesar de poder ser questionado, demonstra bem o que pensam aqueles que procuram encontrar a origem do Benedictus.
Alguns estudiosos já propuseram que tanto o Magnificat quanto o Benedictus são hinos de Isabel, mãe de João Batista.{16} Segundo esta hipótese, a origem destes dois hinos pertencia aos círculos religiosos de Batista. Essa opinião também foi defendida por David Flusser, sobretudo depois de sua leitura de um hino presente no Pergaminho da Guerra (1QM). Segundo ele, existe de fato um hino guerreiro essênio do tipo que está por trás do Magnificat e do Benedictus (2000, p. 153).
Vimos acima que ambos os hinos lucanos abarcam com conteúdo militante. Uma leitura atenta dos relatos bíblicos nos apresenta um Batista com alto grau de militância. Seguindo esta leitura, Batista não teria sido considerado subversivo por castas superiores apenas por seus questionamentos à conduta de Herodes Antipas, que tinha se casado com a mulher do próprio irmão{17} (Mt 14:3-4; Lc 3:19-20). Pelo contrário, ele parece ter tido um papel bem mais “ativo” em seus dias; presumindo-se, portanto, que sua condenação tenha sido ocasionada por apenas um de vários motivos não relatados ou que simplesmente se tenha relatado um entre todos.{18} Os dois hinos, que segundo Flusser teriam sido retirados de uma espécie de evangelho do nascimento de João Batista (2000, p. 150), eram na verdade a adaptação de um ou mais hinos utilizados por Batista e/ou seus seguidores. Os ideais guerreiros, patrióticos e até certo ponto revolucionários, constituem uma mensagem própria dos círculos de Batista, cujos antecessores Flusser localiza entre os membros da comunidade de Qumran.{19}
O hino a que Flusser se refere está registrado em um texto escatológico que abrange vários estilos literários. Ele destaca figuras messiânicas, grupos que atuarão no “fim dos tempos”, e o papel da comunidade na “guerra final” – entre os filhos da Luz e os filhos das Trevas. O hino encontra-se em 1QM 14:4-13:
1QM 14:4-13
Bendição e aliança:
4-5. Bem-aventurado (Bendito – trad. Martínez) seja o Deus de Israel, que preserva misericórdia para Sua aliança e os tempos marcados (predestinados) de salvação para o povo de Sua redenção.
Livramento dos inimigos:
5. Ele chamou os errantes para façanhas poderosas. Ele reuniu uma multidão de nações para a destruição total que não deixará sequer um remanescente.
Fortes e fracos:
6-8. Ele dá força àqueles com joelhos fracos para se manterem firmes (...). Nenhum de seus homens poderosos será capaz de ficar de pé.
11. Mas Tu ergueste os caídos com Tua força. Tu derrubarás os altos de estatura e humilharás os arrogantes.
11-12. Seus homens poderosos não terão ninguém para os salvar e seus homens velozes não terão lugar para onde fugir. Tu trarás desprezo sobre seus nobres (...).
Misericórdia e aliança:
8-9. Ó Deus de misericórdias, que preservas a aliança feita com nossos pais; em todas as nossas gerações Tu fizeste maravilhosas tuas misericórdias.
Exaltação:
12-13. Mas nós o povo de Tua santidade, louvaremos teu nome por causa das obras de Tua verdade. Nós exaltaremos para sempre Teus atos poderosos (...).{21}
Lucas 1
68. Bendito o Senhor Deus de Israel (...).
70. (...) como prometera pela boca dos santos profetas, desde tempos remotos (...).
51. dissipou os soberbos (...).
71. (...) salvação que nos liberta dos nossos inimigos e da mão de todos os que nos odeiam (...).
52a. Depôs poderosos de seus tronos,
52b. e a humildes exaltou.
51. Agiu com a força de seu braço, dispersou os homens de coração orgulhoso.
72-73. (...) para fazer misericórdia com nossos pais, lembrado de sua aliança sagrada, do juramento que fez ao nosso pai Abraão (...).
74-75. (...) nós o sirvamos com santidade e justiça, em sua presença, todos os nossos dias.
O hino precede o Magnificat e o Benedictus em diversas temáticas e, até certo ponto, na estrutura.{22} Com palavras não tão díspares, pode-se perceber onde se encontram as sentenças-chave que teriam sido utilizadas pelo autor cristão em sua redação.
Outra possibilidade que deve ser considerada é a de que tanto o hino do Pergaminho da Guerra quanto os hinos lucanos tivessem como inspiração uma fonte mais antiga, ou seja, outro hino que tivesse todos estes elementos principais e que ainda não tivesse recebido os acréscimos tanto do redator qumranita quanto do cristão, sendo assim o “original” de todos. Seguindo esta ideia, Flusser faz uma tentativa para chegar a esse hino original, somando as temáticas principais existentes nos três hinos e dispondo-as em provável ordem. O texto alcançado foi:
Bem-aventurado seja o Deus de Israel, Que preserva misericórdia para Sua aliança (...) (e) salvação para o povo de Sua redenção. Ele chamou os errantes para poderosas bravuras. Ele reuniu uma multidão de nações para a destruição total (...). Ele exaltará os pusilânimes (...) Ele ensinará a arte da guerra àqueles com mãos deficientes. Ele dá força àqueles com joelhos fracos para se manterem firmes e fortalecerá os ombros dos feridos. Pelos pobres de espírito (...) de coração duro. Pelos inocentes no proceder todas as nações más chegarão ao fim. Nenhum de seus homens poderosos será capaz de ficar de pé. Mas nós (...) (abençoaremos) Teu nome, ó Deus de misericórdias, Que preserva a aliança feita com nossos pais (...). Mas tu ergueste o caído por Tua força, Tu derrubarás os altos de estatura [e humilharás o soberbo]. Seus homens poderosos não terão alguém para os salvar e seus homens velozes não terão lugar para onde fugir. Tu trarás desprezo sobre seus nobres. Mas nós, o povo de Tua santidade, louvaremos Teu nome (...) (e) exaltaremos Teus atos poderosos para sempre (2000, p.159).
As diferenças existentes neste hino, quando comparado aos dois hinos da Natividade lucanos, ocorrem em sua maior parte graças ao grupo a que está direcionado. Termos encontrados aqui, como Tua aliança, Sua redenção, remanescentes de Teu povo, povo de Tua santidade, são referências explícitas à comunidade de Qumran e ao seu papel a ser desempenhado em sua guerra final. Outro fator que deve ser destacado, seguindo as considerações feitas acima, é o de que este hino foi redigido antes de as expectativas messiânicas (comunitárias essênias) terem se cumprido.{20} Entretanto, se retirarmos do hino de 1QM a perspectiva comunitária qumranita e trouxermos o messianismo do Magnificat e do Benedictus para um estágio anterior (ou seja, o Messias ainda seria esperado), as similaridades entre estes hinos tornam-se, por sua vez, muito próximas. Além de conservadas algumas expressões, é nas temáticas que se podem encontrar as analogias mais interessantes. O quadro a seguir coloca lado a lado as partes em que ocorrem analogias.
Essa reconstrução com os elementos principais se coloca como uma alternativa bastante convincente para compreender a pré-história do Magnificat e do Benedictus. Por mais hipotética que seja (uma vez que não existem fontes que possuam hinos similares mais antigos que estes), essa forma de reconstrução é a mais cabível de crédito por ser um método bastante confiável utilizado pela maioria dos historiadores bíblicos.
Assumindo que havia um texto de natureza militante anterior a 1QM e aos hinos lucanos, não se pode desconsiderar que este possa ter sido o texto que serviu de base para Lucas ou o autor cristão que fez os acréscimos. Ainda assim, a hipótese de que 1QM 14:4-13 tenha sido o texto que influenciou tal autor é muito convincente. O que reforça essa conclusão é o fato de tanto o hino de 1QM quanto os hinos da Natividade lucanos destacarem elementos nacionalistas e até revolucionários – elementos próprios da ideologia apocalíptica essênia. Ou seja, mesmo tendo existido uma fonte original, ela teria sido essênia – o que por fim, não mudaria muito a ordem das coisas. Uma fonte essênia teria sido utilizada por outro autor essênio, sendo agregada posteriormente ao texto de 1QM.{23}
Outro ponto importante é saber como este hino chegou até o redator cristão. Como dito acima, o Magnificat e o Benedictus são atribuídos por alguns estudiosos a Isabel e Zacarias, pais de João Batista. Por este viés, estes hinos teriam tido sua recopilação final – ou seja, teriam se “transformado” em Magnificat e Benedictus – pelos seguidores de João Batista, considerado um dissidente essênio que tinha acesso ao rol dos livros qumranitas e que difundiu algumas de suas ideologias (políticas e libertárias) a “todo o Israel” sob uma ótica que defendia a salvação mais abrangente e não somente para um grupo fechado, no caso, seus ex-companheiros essênios. Essa é a opinião de Flusser, que pode assim ser resumida:
A afinidade entre os dois hinos e a oração de ação de graças do Pergaminho da Guerra essênio forçou-nos a sugerir que o Magnificat e o Benedictus foram compostos por discípulos de João. Como João Batista pertencia num sentido mais amplo ao movimento essênio, a conexão entre os dois hinos compostos pelos discípulos de João e uma oração essênia não é nem um pouco surpreendente (2000, p. 162, grifo meu).
A contribuição de Flusser, é, deveras, imprescindível para elucidar como eram possíveis e fartos os casos de adaptação, apropriação e trocas entre grupos do início de nossa era.{24}
4. Bem-aventurado seja o Deus de Israel
Que preserva misericórdia para Sua aliança
tempos marcados (predestinados) de salvação
para o povo de Sua redenção
5. Ele chamou os errantes para façanhas poderosas.
Ele reuniu uma multidão de nações para a destruição
Total que não deixará sequer um remanescente.
6. Pela justiça Ele exaltará o pusilânime e
abrirá a boca do mudo para alegre
louvar os atos poderosos de Deus.
Ele ensinará a arte da guerra para aqueles com mãos
deficientes.
7. Ele dá força àqueles com joelhos fracos para
se manterem firmes e fortalecerá
os ombros do ferido.
Pelo pobre de espírito (...) de coração duro.
Pelos inocentes no proceder todas as nações más
chegarão ao fim.
8. Nenhum de seus homens poderosos será capaz de ficar de pé.
Mas nós, os remanescentes de Teu povo, abençoaremos
Teu nome, ó Deus de misericórdias, que preservas
a aliança feita com nossos pais.
9. Em todas as nossas gerações Tu fizeste
Maravilhosas Tuas misericórdias aos remanescentes da
nação de Israel, mesmo durante o
domínio de Belial.
Pois não fomos levados para longe de Tua aliança
pelos mistérios de seu ódio.
10. Tu repreendeste seus espíritos destrutivos e
Os expulsastes de nós. Tu protegeste
Conclusões
As opiniões dos pesquisadores utilizados aqui (e de outros que infelizmente não puderam ser citados) têm colaborado com a proposta que orientou meu diálogo com seus trabalhos. Esta proposta entende que a literatura hinária tinha maior possibilidade de transitar entre diversos textos mais do que outros estilos literários. Mais importante que isso: esse tipo de literatura poderia carregar consigo aspectos doutrinais originados em diferentes correntes religiosas. Uma vez utilizados pelo grupo receptor, poderiam originar ou ajudar na consolidação de elementos doutrinais dentro de seu grupo. Textos de natureza mais específica, como normativos, exegéticos, proféticos etc., sofriam censura bem maior por parte de outros grupos religiosos (muitas vezes rivais), por, em sua maioria, serem mais carregados de conteúdo parcial. Em geral, estes tipos de conteúdo eram mais impactantes e explícitos. A literatura hinária, por sua vez, apresentava facilidade bem maior em transpor as barreiras organizacionais religiosas devido a sua sutileza. Ela poderia revestir alguns conteúdos doutrinais ou simplesmente transportar conteúdo não agressivo.
Em outro momento, trabalho com a hipótese de que algumas das semelhanças doutrinais compartilhadas entre os manuscritos de Qumran e textos cristãos canônicos, possam ter adentrado os limites sócio-religiosos comunitários cristãos através da literatura hinária. Várias doutrinas encontradas em escritos cristãos, como o dualismo entre o bem e o mal, a justificação, o conceito de pobreza, e uma série de expressões salmódicas e doxológicas, possuem paralelos consideráveis com hinos qumranitas, sobretudo com o extenso 1QH.{25}
Com essa possibilidade aberta, ainda sobra às mãos do pesquisador as dificuldades relacionadas à origem da fonte. Na discussão acerca dos hinos trabalhados acima, estas problemáticas necessariamente tiveram que ser enfrentadas. A primeira nos levou para uma perspectiva verticalizada, sobre como compreender o nascimento e a evolução da fonte historicamente. Por ela, pode-se concluir que havia pouco ou nenhum empréstimo entre os grupos religiosos contemporâneos do séc. I d.C. Ao contrário, os conteúdos que apresentam algum grau de semelhança teriam sido, na verdade, influenciados exclusivamente por fontes antigas. Documentos existentes em períodos anteriores teriam servido como base para a composição de textos que nasceriam em períodos não tão díspares no futuro. Tal fato explicaria a semelhança entre eles, e, ao mesmo tempo, traria à tona a existência de outras fontes – conhecidas entre os grupos contemporâneos do passado, mas infelizmente (na maioria das vezes) desconhecidas por nós. A outra perspectiva, que também esteve presente na análise dessas fontes, é simplesmente oposta. Por ela, a busca de raízes mais profundas na sociedade israelita é desprezada, e as respostas são encontradas no período contemporâneo ao nascimento da fonte. A compreensão do pensamento religioso existente nela, por esse viés, seria oriunda da sociedade – destacando, nesse caso, as influências entre comunidades religiosas.
Nas considerações feitas acima sobre as origens do Magnificat e do Benedictus, ambas as possibilidades de análise se cruzaram. Pôde-se perceber que tanto as influências do passado quanto contemporâneas estiveram presentes na criação dos dois hinos lucanos. Elementos culturais, teológicos, e fórmulas próprias dos hinos religiosos presentes nas Escrituras Hebraicas, podem ser encontrados dentro destes hinos. Acerca das influências contemporâneas, cabe destacar o papel da comunidade essênia de Qumran. Esse grupo religioso já era consolidado havia bastante tempo, bem antes da redação dos textos cristãos. Possuía uma casta letrada produtora (e possivelmente difusora) de textos religiosos – o que reforça a hipótese de que outros grupos tenham tido contato com este material. Relacionado a isso, pudemos aproveitar o método utilizado por Flusser em sua reconstrução da “fonte original” que teria chegado às mãos do redator cristão. Entretanto, no que se refere ao caminho percorrido por essa fonte até sua chegada às mãos desse redator, acredito que o percurso tenha sido bem menos complexo.{26} Hoje está consolidada a ideia de que existiam várias comunidades essênias espalhadas pelo território palestino, inclusive com grupos residentes dentro de meios urbanos.{27} Isso ajuda-nos a entender que estes textos eram bem menos “sectários” do que se presumia anteriormente.{28} Os textos hinários eram relativamente curtos (comparados a manuscritos temáticos), tinham a possibilidade de se “descolar” do restante do texto com facilidade, por isso podiam alcançar limites geográficos mais extensos, rompendo mesmo com os limites restritivos partidário-religiosos. Acredito que, sob esse prisma, as influências do passado israelita e do presente qumranita tenham ajudado na construção dos hinos Magnificat e Benedictus.
Notas de Rodapé
1 As citações bíblicas serão extraídas da BÍBLIA DE JERUSALÉM. 7o Impressão Revista. São Paulo: Paulinas, 1995.
2 Não é incomum encontrar em textos palestinos antigos trechos que foram incorporados posteriormente ao texto central. Isso pode ser percebido em diversas partes da Bíblia Hebraica e nos manuscritos de Qumran. O importante texto normativo de 1QS, traz conjuntos diversos que foram incorporados ao texto central possivelmente em períodos posteriores, como o Código Penal encontrado em 6:24-7:27 e os extensos hinos dispostos em 1:24-2:17 e 10:1-11:22. Estes são exemplos de textos que possuem origem em estudos diferentes e que são inseridos em algum momento no texto.
3 Essa é uma de outras ideias que tenho defendido ultimamente, principalmente quando se trata de assuntos relacionados às inspirações que teriam sido utilizadas por grupos religiosos do séc. I d.C. (incluindo Qumran). A maior parte dos pesquisadores encontra as bases do pensamento religioso desses grupos nas tradições registradas nos textos antigos da Bíblia Hebraica. O problema oriundo dessa perspectiva é que todas as práticas e representações encontradas em comunidades religiosas do séc. I d.C. parecem dever a uma tradição mais erudita, ligada aos textos; enquanto que as características culturais (e em menor peso políticas e econômicas) parecem não existir nesse tipo de análise. Concordo plenamente que a ausência de fontes de outras naturezas sirva como empecilho para uma análise mais abrangente e que a importância dada ao texto bíblico era muito grande e fazia parte não só da cultura do povo judeu, mas de toda a Palestina à época de Qumran e comunidades cristãs. Entretanto, tal maneira de proceder parece não reconhecer a existência de práticas que não estejam registradas nas fontes religiosas. Segundo Richard Horsley (que dá um foco bastante interessante à pesquisa bíblica por utilizar amplamente recursos das ciências sociais, assim como da arqueologia, economia, demografia e linguística), a população que tinha conhecimento da escrita e da leitura era inferior a 2% (2000, passim). Devido a apontamentos como esse, não consigo deixar de acreditar que aspectos culturais pudessem estar fortemente presentes independentemente da tradição bíblica.
4 John Nolland concorda que existem várias possibilidades para explicar a origem dos dois hinos. Entretanto, Lucas teria tido um papel na formulação final dos textos, não apenas importando as perícopes para dentro do texto (cf. 1989, p. 63).
5 Reforço a simples, mas importante consideração que deve ser feita sobre os textos de Qumran: toda e qualquer análise deve partir da compreensão de que estes manuscritos não foram textos criados sob uma perspectiva objetiva, científica. Antes disso, foram compostos sob perspectivas literárias diferentes das que se enquadrariam com os estilos atuais. Em minha opinião, os textos que melhor nos ajudam a compreender as perspectivas históricas e sociais da comunidade são os textos normativos (sobretudo os conhecidos 1QS [1QRegra da Comunidade] e CD ) e outro grupo conhecido como “comentários” (pesharim – os mais referenciados são 1QpHab [1QComentário de Habacuc] e 1QpNah [1QComentário de Nahum]. Os textos poéticos oferecem grande contribuição no que se refere às perspectivas teológicas e doutrinais do grupo redator, mas colaboram pouco para a compreensão social da comunidade.
6 Nota da Bíblia de Jerusalém utilizada neste v.: A esterilidade era considerada desonra (Gn 30:23, 1Sm 1:5-8), e até mesmo castigo (2Sm 6:23, Os 9:11).
7 Não há consenso entre os pesquisadores acerca da data exata em que as dependências de Khirbet Qumran foram habitadas pela comunidade que legou os manuscritos. Em geral, elas giram em torno da primeira metade do séc. II a.C. A maior parte dos pesquisadores acredita que o grupo se estabeleceu em Qumran logo após a tomada do sacerdócio pelos asmoneus, o que fez com que um grupo de judeus ligados ao sacerdócio fosse marginalizado e em seguida rumasse ao deserto. Se esta, que é a mais popular entre as alternativas, não estiver errada, o grupo teria se dirigido a Qumran pouco depois do ano 152 a.C., ano em que Jônatas Macabeu (de família asmoneia) assumiu o sacerdócio (cf. (Antiguidades Judaicas 13: 5, 9, 171-172).
8 A literatura apocalíptica representou parte do pensamento judaico de todo um período conturbado, que abrange desde as intervenções sírias em território judaico, na primeira metade do séc. II a.C., até, segundo Richard Horsley (2007, p. 33-35), os dias da Segunda Revolta Judaica (132-135 d.C.), encabeçada por Simão Bar Kokhba. Após a revolta de Bar Kokhba, o Judaísmo Rabínico consegue, por fim, abafar as expectativas messiânicas que tanto custou aos judeus nos séculos anteriores.
9 Para melhores considerações sobre o tema, cf. DE BOER, Martinus. A influência apocalíptica judaica sobre as origens cristãs: gênero, cosmovisão e movimento social. Revista Estudos de Religião. São Bernardo do Campo: UMESP. v. 14, n. 19. 2000. pp. 11-24.
10 O gênero apocalíptico era bem conhecido por Qumran. Entre os livros deste estilo descobertos, destacam-se 4Q246, 4QPsDa, 4Q521 e 6Q14.
11 Muitos exemplos são encontrados na Bíblia Hebraica sobre a junção de dois termos como os citados acima. As expressões conjuntas baruc ’adonai ’elohim (sendo o tetragrama lido como ’adonai) aparecem em textos como Gn 24:27, 1Sm 25:31, 2Sm18:28, 1Rs 1:48, 8:15, Sl 41:14, 72:18, 1Cr 16:36, 29:10, 2Cr 2:11, 6:4. A presença dos termos baruc ’adonai pode ser vista nos textos Ex 18:10, 1Rs 5:20, 8:56, Zc 11:4, Sl 28:6, 31:22, 89:53, 124:6, 135:21, 144:1.
12 A maior parte dos hinos de 1QH que tiveram sua introdução preservada, possui como fórmula introdutória a expressão baruc ‘atah ‘adonai (cf. 6:8, 8:16, 18:14, 19:27) ou alguma de suas variantes, sendo a mais comum ‘odecah ‘adonai (“dou-te graças Senhor” – cf. 6:23, 10:20,31, 11:19,37, 13:5, 15:6,26, 16:4, 17:38).
13 O texto foi traduzido por Émile Puech (Série DJD, n. 25, pp. 115-178. Oxford: Clarendon Press, 1998). Muitos pesquisadores referem-se a 4Q525 em comparação não apenas com a lista de bem-aventuranças descrita em Mt 5:3-10, mas também com a encontrada em Lc 6:20-23, considerada por muitos como sendo mais “original” (para uma consideração comparativa entre os textos, cf. VANDERKAM. James C. FLINT, Peter. The meaning of the Dead Sea Scrolls: their significance for understanding the Bible. NY: T&T Clark International. pp. 336-338).
14 Tradução do texto bilíngue (hebraico/inglês) de SCHERMAN, 1995, p 420-421.
15 Alguns dos hinos de 1QH são escritos em primeira pessoa. Já foi sugerido que esta “primeira pessoa” teria sido o Mestre da Justiça, citado em CD 1:11 como o líder criador do grupo de Qumran.
16 Essa opinião é derivada da conclusão de que os dois hinos possuem traços semelhantes, ligando-os a uma mesma tradição. Segundo Nolland, similaridades entre o Benedictus e o Magnificat têm sido frequentemente notadas (no vocabulário há uma particular concentração de termos comuns nos vv. 54-55 do Magnificat), e a comum autoria assim como a dependência de ambos os trechos têm sido afirmadas. Os cânticos compartilham um método similar de alusão ao AT, uma similar, mas não idêntica orientação escatológica e um interesse em uma figura secundária para a vinda do Messias (1989, p. 83. trad. minha).
17 O irmão de Antipas era ainda vivo. Não haveria problemas se Antipas tivesse se casado com ela após a morte do irmão, pois isto estava previsto na legislação israelita.
18 Esta leitura se encaixa com a proposta de Richard Horsley, que dá enfoque considerável à questão política. Não apenas João Batista, mas também lideranças públicas oriundas de camadas inferiores (segunda as propostas tradicionais, consideradas apenas por suas posições religiosas) que noticiavam as injustiças correntes durante seus dias (várias delas conhecidas apenas pelas fontes josefianas e o Novo Testamento), serão consideradas um embaraço para as autoridades políticas judaicas e romanas. Estes indivíduos foram encarados pela população como líderes: ora proféticos ora messiânicos. Entretanto, as autoridades constituídas viam em figuras como estas uma ameaça à “ordem” estabelecida (HORSLEY, 2007, passim). Não à toa que movimentos nascentes e seus líderes foram tratados com força bruta e tiveram finais trágicos, como nos casos mais conhecidos relatados nos Evangelhos, de João Batista e Jesus de Nazaré; e nos escritos josefianos, os de Teúdas (AJ 20:97-8) e do “Egípcio” (GJ 2:261-63, AJ 20:169-71, cf. At 21:38).
19 Alguns pesquisadores acreditam que João Batista tenha sido um dissidente da comunidade essênia do mar Morto. Ele é descrito nos Evangelhos como um homem que residia no deserto e que lá começou a sua pregação (Mc 1:4-6; Mt 3:1-6). O primeiro capítulo do livro de Lc (onde encontramos o Magnificat e o Benedictus), quase que por inteiro, trata direta ou indiretamente de assuntos ligados ao nascimento de João Batista. Esses registros levantam a hipótese de João ter se associado aos essênios e abandonado sua perspectiva em um segundo momento, por não concordar com as restrições da comunidade de Qumran. Essa é a opinião de Otto Betz, quando afirma que João Batista foi criado nessa comunidade junto ao mar Morto e dela recebeu forte influência, tendo partido mais tarde para pregar a uma comunidade maior de judeus (1993, p. 216).
20 Os romanos impediram que isso viesse a acontecer no ano 68 d.C.
21 A disposição com que trabalho os hinos segue ordem e temáticas diferentes das utilizadas por Flusser. No que se refere à utilização dos textos em suas línguas originais, afirmo que tal procedimento pouco colaboraria para a análise presente. Textos de idiomas diferentes, como o hebraico e o grego, analisados em justaposição, remetem a uma tentativa de reconstrução mais textual (estrutural) que temática. Em minha opinião, essa é uma proposta pouco fecunda quando aplicada a idiomas antigos, considerando a própria estrutura da língua (cf. CHABROL, 1980, p. 7).
22 Logo no início do hino, encontramos a expressão Isra’el baruc ’el, uma fórmula idêntica à encontrada no Benedictus.
23 A maior parte dos grandes manuscritos encontrados em Qumran passou por um longo processo envolvendo redação e compilação. Estes se transformaram na “versão consolidada” apenas depois de algum tempo. Tal fato é mais perceptível nos textos que possuem estilos literários diversos. Na medida em que o texto foi sendo construído, inserções de outros textos também ocorreram. No caso da inserção de hinos, normalmente seu acréscimo não entrava em contradição com o restante do conteúdo graças a sua menor significância escatológica – o que os tornava mais fácil em harmonizar com o texto inteiro.
24 Os outros hinos da Natividade registrados por Lucas não nos trazem maiores revelações. Muito do que foi dito sobre os dois hinos acima no que tange aos métodos investigativos, serve também para o Gloria in Excelsis (2:14) e o Nunc Dimittis (2:29-32). O Gloria in Excelsis (expressão latina equivalente a “glória a Deus nas alturas” – existente no início do hino) apresenta-se como uma aclamação doxológica enquanto o Nunc Dimittis (sentença, também latina, que significa “despedes em paz o teu servo”, encontrado no prólogo do hino. Este hino possui o nome mais popular de “cântico de Simeão”) parece retratar as esperanças messiânicas do período. Quanto às origens dos hinos, no estágio atual em que se encontram as pesquisas, é impossível afirmar algo a mais do que sua origem judaica em sentido geral.
25 VIEIRA, 2008, p. 49-72.
26 A proposta de Flusser é construída por cima da tese de João Batista como ex-qumranita e como ex-essênio. Apesar de apresentar alguma harmonia, as bases desta tese são muito frágeis.
27 Flávio Josefo diz que os essênios ...não têm cidade certa onde morar; estão espalhados em várias (GJ 2:7). Em outra passagem, ele cita essênios que ofereciam ofertas sacrificiais no Templo de Jerusalém (AJ 18:19). Estes comentários ajudam a consolidar a opinião de que a comunidade de Qumran era apenas uma entre várias comunidades essênias espalhadas pela Palestina. Nem todas estas comunidades haviam aderido à proposta de isolamento, como Qumran. Antes, por questões diversas (ressalto sempre as econômicas), teriam optado por viverem em núcleos urbanos.
28 A maior parte dos pesquisadores dos manuscritos de Qumran acredita que nem todos os textos encontrados nas cavernas próximas ao assentamento tenham pertencido ao grupo que lá habitou. O fato de terem sido utilizados pelos habitantes de Qumran não significa que tenham sua autoria reservada a esta comunidade. Um texto bastante importante que colabora com este argumento é CD (Documento de Damasco). O texto é direcionado a “comunidades”, e não apenas ao grupo que habitou Qumran (cf. CD 14:3, 9). Tal fato ajuda a entender que a comunidade de Qumran, na verdade, participava de um movimento mais amplo do que se imagina.
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